quinta-feira, 15 de março de 2012

CHUVA DE RAVIÓLIS

“Schlaraffenland” (“Terra do leite e do mel”) de Pieter Brueghel, o velho (1525-1569), óleo sobre madeira (1567) in München Alte Pinakothek, Munique, Alemanha.

O grande historiador brasileiro  Hilário Franco Júnior assim inicia seu indispensável, imprescindível e maravilhoso “Cocanha – Várias Faces de  uma Utopia”:


“Cocagne, Cockaygne, Cuccagna, Bengodi, Cucaña, Chacona, Jauja, Schlaraffenland, Luilekkerland, São Saruê. Várias são as tradições folclóricas que falam no país da Cocanha, como mostram os textos e as imagens selecionados e traduzidos nesta antologia. Dos século XIII-XV, conhecemos ainda hoje oito representações literárias e iconográficas. Dos séculos XVI-XVII temos, dentre outras, 12 versões francesas, 22 alemãs, 33 italianas, 40 flamengas. Mesmo depois, apesar do recuo no interesse pelo tema, ele ainda foi objeto, por exemplo, de um quadro de Goya em fins do século XVIII e de um folheto de cordel brasileiro em meados do XX”


Fonte: Hilário Franco Júnior in Cocanha – Várias Faces de uma Utopia. Cotia: Ateliê Editorial, 1998, p. 9.


Já o historiador italiano Carlo Ginzburg, no meio do seu magistral “O Queijo e os Vermes” (Il formaggio e i vermi), assim passeia pelo lugar:


“Tomemos o Capitolo, qual narra tutto l’essere d’um mondo nuovo, trovato nel mar Oceano, cosa bela, et dilettevole, que surgiu anônimo em Modena, por volta de meados do século XVI. Trata-se de uma entre as muitas variações sobre o antigo tema do país da Cocanha (nomeado explicitamente no Capitolo e também na Begola contra la Bizaria, que o precede), localizado aqui entre as terras descobertas para lá do Oceano:


“Navegantes do Mar Oceano acharam/ há pouco tempo um divinal país,/um país jamais visto nem ouvido...”


A descrição repisa os motivos usuais da grandiosa utopia camponesa:


“Uma montanha de queijo ralado/ se vê sozinha em meio da planura,/e um caldeirão puseram-lhe no cimo.../Um rio de leite nasce de uma grota/e corre pelo meio do país,/seus taludes são feitos de ricota.../Ao rei do lugar chamam Bugalosso;/por ser o mais poltrão, foi feito rei;/qual um grande paiol, é grão e grosso/e do seu cu maná lhe vai manando/e quando cospe cospe marzipã;/tem peixes, não piolhos, na cabeça.”


Mas este “mundo novo” não é só o país da abundância: é também um país que não conhece os vínculos das instituições sociais. Não existe família, porque lá vigora a mais completa liberdade sexual.


“Não é preciso saia nem saiote/lá, nem calça ou camisa em tempo algum,/andam nus todos, homens e mulheres,/Não faz frio nem calor, de dia ou de noite,/vê-se cada um e toca-se à vontade:/oh que vida feliz, oh que bom tempo.../Lá não importa ter-se muitos filhos/a criar, como aqui entre nós;/pois quando chove, chovem raviólis./Ninguém se preocupa em casar as filhas,/que são posse comum e cada qual/satisfaz os seus próprios apetites.”


Não existe propriedade, porque o trabalho não é necessário, e tudo é comum a todos:


“Todos têm o que querem facilmente/e quem jamais pensasse em trabalhar/pra forca iria e o céu não o salva.../Lá não há camponês nem citadino,/todos são ricos, têm o que desejam,/que de frutos os plainos se carregam./Não se dividem campos nem herdades,/pois recursos abundam para todos/e o país vive plena liberdade.”


Esses elementos, reencontráveis (embora em menos detalhes) em quase todas as versões do país da Cocanha feitas no século XVI, são muito provavelmente exagero da imagem, já mítica, que os primeiros viajantes forneceram das terras descobertas além do Oceano e de seus habitantes: nudez e liberdade sexual, ausência de propriedade privada e de qualquer distinção social, num cenário de uma natureza extraordinariamente fértil e acolhedora.”


Fonte: Carlo Gizburg in O Queijo e os Vermes – O Cotidiano e as Idéias de um Moleiro Perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia. das Letras, 1995, pp. 165-166.

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Interessante. Estava olhando sobre a "Terra de São Saruê", bastante retratada em cordéis nordestinos e no filme "O homem que desafiou o diabo".

    Estamos falando da mesma origem folclórica?

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  3. Prezado Felipe, eu creio que a origem é a mesma, o que é diferente é o jeito de contar e também de velar, não falar de certas coisas no sertão, enquanto que na Cocagna se fala de quase tudo - por exemplo, sobre a sexualidade - é claro que no Homem que Desafiou o Diabo isso passa batido. No entanto, o filme é muito esclarecedor sobre o significado de São Saruê/Cocanha, ou seja, quando o herói troca de nome e de vida, eis aí a essência desta utopia - poder ser outro, viver uma outra vida...sem pagar o preço disso - essa utopia não deixa de ser o ideal de toda neurose. E, como toda neurose, destinada ao fracasso. O preço de nada pagar é simplesmente nada mais desejar - o fim do desejo. Se habitássemos uma terra onde falta não houvesse, tampouco haveria desejo.
    Agora, sonhar é o que fazemos cada vez que encontramos uma barreira para o desejo. E vivam os sonhos de São Saruê e da Terra da Cocanha!
    Um abraço, Leonardo Ferrari.

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